Rubem Fonseca
A casa tinha vários quartos. Perguntei em qual
deles eu ia dormir. Ela me levou para um quarto que ficava perto do dela.
Sentei na cama, testei o colchão. Não dá, é muito mole, vai acabar de vez com
as minhas costas. Testei os colchões de todos os quartos e acabei encontrando
um duro.
─ Esse aqui está bom, você tem uma camisa que sirva em mim? Esqueci de
trazer uma roupa para dormir.
A mulher voltou logo em seguida com uma camisa de
malha branca.
─ Essa é a maior que eu tenho. Usei uma vez, tem importância?
Agradeci e a
mulher me deu boa-noite. Vesti a camisa, senti o cheiro do tecido, uma mistura
de pele limpa e perfume. Procurei uma posição para dormir. As costas doíam. Eu
tinha uma porção de ossos quebrados e mal emendados espalhados pelo corpo. A
mulher bateu tão de leve na porta que quase não ouvi.
─ Sim?
─ Sou eu.
─ Queria falar com você.
─ Um momento.
Vesti a calça
e abri a porta. Ela vestia um penhoar e uma mulher de penhoar sempre me lembra
minha mãe. Aliás a única coisa que lembro da minha mãe é o penhoar.
─ Você está
muito longe, não me sinto protegida, não consigo dormir, você não pode ir para
aquele quarto ao lado do meu? A gente leva o colchão duro dessa cama e troca
pelo outro.
Levei o meu colchão duro para o quarto ao lado
do dela. Sentei na cama.
─ Acho que
agora está bom. Dá para dormir, boa noite.
─ Boa noite.
Não aguentei
dez minutos deitado. A dor na coluna aumentou. Saí da cama, sentei-me numa
poltrona que havia no quarto. Outra batida na porta.
– O que é?
Ouvi um
barulho no jardim, ela sussurrou através da porta, acho que tem alguém no
jardim. Vesti a calça. Abri a porta. Ela continuava de penhoar.
– Isso deve
ser impressão sua. Você anda muito nervosa. Em que lugar do jardim?
– No bosque
das magnólias. Lá não tem luz e tive a impressão de que vi uma luz apagar e
acender.
– Você tem uma
lanterna?
– Tenho.
A mulher me
deu a lanterna.
– Toma
cuidado. Eu já lhe contei as coisas horríveis que têm acontecido comigo, não
contei? Você devia ir para o seu apartamento na cidade.
– Lá é pior.
Eu já lhe contei. Tive que desligar o telefone por causa dos trotes no meio da
noite, me ameaçando. E tem gente me seguindo pelas ruas. Aqui pelo menos as
janelas estão todas gradeadas e as portas são de ferro. Leva o revólver.
– É melhor o
revólver ficar com você. Fecha a porta. E não fica olhando lá pra fora pela
janela.
Era um sítio
grande. Um gramado com canteiros de flores rodeava a casa. No meio do gramado,
uma piscina. Nos fundos, a casa do caseiro, a horta. O resto do sítio era cheio
de bosques com árvores de grande porte, que tornavam a noite ainda mais escura.
Havia bancos de pedra espalhados pelo meio das árvores. Sentei em um deles, no
bosque de magnólias. Esperei, a lanterna acesa sobre o banco. Sônia surgiu
silenciosamente de dentro do escuro, sentou-se ao meu lado no banco de pedra.
– Você deixou
o seu revólver num lugar onde ela visse?
– Deixei na
mão dela. Estou seguindo o plano de vocês.
– Ouve esse
barulho, disse Sônia ligando um gravador que tirou da bolsa. Parecia um gemido,
de alguém morrendo. Não parece um fantasma?
A sorte de
vocês é que aqui não tem cachorro.
– Tinha. Nós o
envenenamos. O Jorge envenenou.
– Quando é que
ela vai usar o revólver?
– Ela está
morrendo de medo, vamos esperar mais um pouco. Quem é esse Jorge?
– Se você não
sabe eu não vou dizer.
– Por que
vocês querem que a mulher morra?
– Isso não é
da sua conta.
Vou voltar
para a casa. Desliga esses gemidos. Por hoje chega.
–Não se
esqueça do nosso acordo, disse Sônia. Dentro de mais três dias isso tem de ser
resolvido. Se ela continuar indecisa, você dá o tiro na cabeça dela.
Voltei para a
casa. A mulher abriu a porta com o meu revólver na mão. Tremia, com os olhos
esbugalhados.
– Que barulho
era aquele?
–Nada.
– Como nada?
Eu ouvi. Você pensa que estou maluca?
– Não.
– Eu sei, eu
sei que você pensa que estou maluca.
A mulher
apontou o revólver para mim. Diga a verdade. Você acha que eu sou maluca. Os
caseiros achavam que eu era maluca e foram embora de noite, sem me dizer nada.
Eu acabei de ouvir um gemido forte, o barulho de uma alma penada, como a minha,
e você me diz que não era nada? E este revólver que não tem balas? É assim que
você ia me defender? Com um revólver sem balas?
– Como você
sabe que não tem balas?
– Dei seis
tiros na minha cabeça e não aconteceu nada.
– Esqueci de
colocar as balas. Não sei como isso foi acontecer, sou muito cuidadoso.
– Você tirou
as balas porque pensou que eu era maluca e ia dar um tiro na cabeça.
–Estou aqui
para proteger você. Vai dormir. Amanhã de manhã a gente conversa.
– Não fala
assim comigo. Estou muito nervosa. Dorme no meu quarto comigo.
– Está bem.
A mulher
deitou-se sem tirar o penhoar, cobriu-se com um lençol. Sentei na poltrona do
quarto. Todos os quartos tinham poltronas e banheiro privativo. Da cama ela
olhava para mim, suspirava como quem quer chorar.
– Vem aqui,
segurar na minha mão.
Segurei na mão
dela.
– Você tem a
mão grande. Você era trabalhador braçal?
– Não.
Você foi
sempre acompanhante de pessoas doentes?
–Quando eu era
jovem passei uns dois anos empurrando a cadeira de rodas de um velho. Foi a melhor
época da minha vida, eu gostava de ler, ele tinha milhares de livros e eu
passava o dia lendo.
– Nunca vi
você lendo aqui.
– Ainda não
tive tempo e os seus livros não me atraem.
– Sinto muito.
E depois de trabalhar na casa cheia de livros que te atraíam?
– Depois tomei
conta de outro velho.
– Ele era
doente mental?
– Não. Uma
doença de velhice (O sujeito se matou, com a minha ajuda, mas isso eu não diria
a ela. Vê se consegue dormir um pouco.
– Eu sou
maluca?
– Não. Está
apenas muito nervosa.
A mulher
dormiu. Larguei a mão dela. Fui para a poltrona e fiquei a noite inteira
acordado, pensando, sentindo o cheiro da camisa dela no meu corpo e olhando
para a mulher enquanto ela dormia. O homem primitivo devorava como uma hiena os
restos dos cadáveres dos bichos que encontrava e que haviam sido caçados por
outros animais. Só se tornou um caçador depois que astutamente inventou suas
armas perfurantes. Coloquei as balas no tambor do revólver.
A mulher na
cama parecia um cachorro morto em quem era fácil dar pontapés. Não faço
perguntas, quando me pedem um serviço. Mas neste caso gostaria de saber quem
queria que ela desse um tiro na cabeça. Um marido escroto aterrorizando a
mulher histérica para fazer ela se matar e ficar com a grana? Já passei por uma
situação mais ou menos assim, numa semana de carnaval.
O dia raiou, os passarinhos
começaram a piar e a mulher acordou. Ela sorriu para mim.
Hoje estou me
sentindo melhor. Acho que esse pesadelo vai acabar. Vou trabalhar no jardim,
você fica perto de mim?
Saí do quarto
dela. No meu banheiro, lavei o rosto e escovei os dentes. Fui para o jardim. A
mulher tinha um chapéu na cabeça para protegê-la do sol. Pediu para eu
acompanhá-la até um quarto de ferramentas que ficava ao lado da garagem. Havia
picaretas, pás, um cortador elétrico de grama, uma bomba com implementos para
limpar a piscina. Pegou uma tesoura dessas que se usam nos jardins.
Meu jardim é
bonito, não é? Eu mesma plantei essas flores, não são bonitas?
Não dou muita
importância a flores, mas ouvi com paciência ela dizer os nomes das que
cresciam nos canteiros.
– Preciso dar
um telefonema.
– O telefone
está desligado.
–Vou lá no
centro da vila.
–Por favor,
não me deixe sozinha.
– Então você
vem comigo. Depois você trabalha no jardim.
Pegamos o
carro dela. Você gosta de música? Se
você quiser ouvir eu não me incomodo.
Ela colocou um concerto de
violino no aparelho do carro.
Não dá uma
sensação de paz?
Música de violino me deixa
inquieto, mas aguentei sem dizer nada. Chegamos na pracinha da vila. Parei na
porta do mercadinho, cheia de sacos de comida de gato e de cachorro.
Ela saltou do
carro comigo. Vou fazer compras, cansei de comer congelados.
O homem do
mercadinho cumprimentou-a amigavelmente, a mulher tinha aquele sítio havia
muitos anos. O homem perguntou se eu era o novo caseiro e a mulher respondeu
que eu era um amigo.
Próximo havia uma padaria. Liguei
de lá para a Sônia.
Vou fazer o
serviço. Mas quero antes ter uma conversa com você e o Jorge. Quero receber o
que falta. Hoje à noite, naquele lugar onde nos encontramos ontem.
– O Jorge não
vai.
O problema é
dele. Se ele não vier conversar comigo, nada feito. Nove horas.
Desliguei o telefone. Voltei ao
mercadinho. Peguei a saca cheia de compras e fomos para o carro.
A mulher trabalhou no jardim,
depois fez comida para nós. Mas apenas sentou comigo na mesa, não comeu nada.
Logo voltou a trabalhar no jardim, enquanto ouvia música, eu o tempo inteiro ao
lado dela, sofrendo com aquela música, desejando que aquilo tudo acabasse de
uma vez. Quinze minutos antes das nove eu disse para a mulher que ia dar uma
olhada no terreno do sítio, que talvez demorasse um pouco.
– Não me deixa
sozinha.
Peguei a
lanterna. Não vou me afastar muito, não se preocupe. Tranca tudo e só abra a
porta para mim. E não fica na janela.
– Por favor...
Não se preocupe.
–Saí, levando
o revólver. No quarto de ferramentas peguei duas pás e uma picareta e fui para
o bosque de magnólias. Sentei no banco de pedra, a lanterna acesa. Coloquei as
pás e a picareta ao lado do banco.
Sônia e Jorge
demoraram a aparecer. O homem usava um chapéu que cobria metade do rosto dele.
Apaga essa lanterna. O que você
queria comigo?
Eu o reconheci logo. Se você quer
ficar vivo neste mundo de merda não pode esquecer nem a cara nem a voz de
ninguém. Era o filho do velho Baglioni que eu ajudara a ir para o outro mundo.
Fingi que não o reconhecera.
Uma pergunta,
apenas. A mulher é sua esposa?
Essa velha?
Ela é minha sócia, pirou e está fodendo os negócios. O que você queria comigo?
Receber o que falta.
Antes de você
fazer o serviço? Impossível. Trato é trato.
Vou matar a
mulher hoje e dar o fora. Como vou receber o que falta?
Você sabe onde
encontrar a Sônia. Ela te paga depois.
Acendi a
lanterna. Mostrei as pás e a picareta.
Quero que
vocês me ajudem a abrir uma cova, se eu for fazer isso sozinho vai levar um
tempo enorme. O corpo tem que sumir. Fiz compras com ela no mercadinho da vila
e viram a minha cara.
Só faltava essa, disse Jorge.
Sem cova não tem cadáver.
– Está bem,
está bem, disse Jorge pegando uma das pás. Eu peguei a outra e a picareta.
Aqui não.
Temos que sair do sítio, vamos para a floresta.
Não posso andar muito, estou de
sapatos altos, disse Sônia.
–O problema é
seu.
Andamos pela floresta,
Sônia reclamando que os seus sapatos estavam se estragando.
– Aqui está
bom, eu disse.
Sônia se
recusou a cavar. Eu e Jorge trabalhamos em silêncio, como os coveiros fazem.
Não é fácil abrir uma cova grande, ainda mais num solo duro como aquele. Empapamos
de suor as nossas camisas. Jorge suava mais do que eu, mas não tirou o chapéu
que escondia o seu rosto.
Jorge largou a
pá. Chega, já é suficiente, ele disse. Continuei
com a picareta na mão. Ainda falta uma coisa, eu disse.
Golpeei com
força a cabeça de Jorge, usando a ponta da picareta. Ele caiu. Sônia começou a
correr, mas deu apenas alguns passos e um grito de medo, não foi bem um grito,
foi uma espécie de uivo.
Verifiquei se estavam mesmo
mortos, não queria enterrá-los vivos. Trabalhei aprofundando a escavação mais
um pouco. Joguei os dois dentro do buraco e cobri com terra. Soquei a terra com
a pá e cobri a cova com pedras e galhos de árvore. Naquela floresta só havia
passarinhos, sapos, cobras, insetos e outros bichos inocentes. Não iam abrir
aquela cova, mas eu não queria correr riscos.
Lavei as pás e a picareta no
tanque e levei de volta para o quarto de ferramentas. Bati na porta de ferro da
casa.
Sou eu, pode
abrir a porta.
A mulher abriu
a porta, assustada como sempre. – Você viu alguma coisa?
Não. Nem ouvi
nenhum som estranho. Você ouviu?
Não, ela respondeu. Quer tomar um
chá? Vou fazer um chá para a gente.
Fiquei no sítio mais uma semana
com a mulher, apesar da música. Não há nada mais irritante do que essa música
de violino. Todo dia eu ia ver a cova onde aqueles dois estavam apodrecendo,
para ver se havia algum cheiro ruim no ar. Nada. No mercadinho da vila
indicaram um casal de velhos que foram contratados como caseiros pela mulher. O
velho era um homem rijo que trabalhava o dia inteiro no jardim, ele e a minha
mãe. Estou brincando, mas gostaria que ela fosse minha mãe. Eu gostava dela. Se
tivesse uma mãe assim eu seria um homem diferente, meu destino ia ser outro e
eu tomaria conta dela, ia ter alguém para amar.
Ela estava no
jardim com o caseiro, mexendo na terra. Tenho que ir embora, eu disse.
Não sei como pagar o que você fez
por mim. Fiquei boa. Não tenho mais medo.
– Boa você não
está. Mas ninguém mais vai ligar o telefone para você no meio da noite, nem
ninguém mais vai te seguir pelas ruas apavorando você. Como posso te pagar?
Você deve precisar de dinheiro.
Já recebi o
meu pagamento. Mas você pode me levar de carro até a estação de ônibus na
cidade. A mulher me levou de carro até a estação.
– Quando você
precisar de alguma coisa, me procura.
– Me dá o seu
telefone, disse ela.
– Não tenho
telefone.
– A Sônia deve
saber como encontrar você se eu precisar, não? Ela foi muito boa, indicando
você para meu anjo da guarda.
Não respondi.
A mulher esperou comigo o ônibus chegar, nós dois dentro do carro ouvindo a
música que ela gostava e o violino não me pareceu tão irritante. Peguei o
ônibus. Ela me acenou enquanto o ônibus se afastava.
In: http://portaldoprofessor.mec.gov.br/fichaTecnicaAula.html?aula=23730. Acesso em 19/06/12
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