terça-feira, 21 de agosto de 2012

O casamento



Luis Fernando Verissimo

— Eu quero ter um casamento tradicional, papai.
— Sim, minha filha.
— Exatamente como você!
— Ótimo.
— Que música tocaram no casamento de vocês?
— Não tenho certeza, mas acho que era Mendelssohn. Ou Mendelssohn é o da Marcha Fúnebre? Não, era Mendelssohn mesmo.
— Mendelssohn, Mendelssohn...
Acho que não conheço. Canta alguma coisa dele aí.
— Ah, não posso, minha filha. Era o que o órgão tocava em todos os casamentos, no meu tempo.
— O nosso não vai ter órgão, é claro.
— Ah, não?
— Não. Um amigo do Varum tem um sintetizador eletrônico e ele vai tocar na cerimônia.
O Padre Tuco já deixou. Só que esse Mendelssohn, não sei, não...
— É, acho que no sintetizador não fica bem...
— Quem sabe alguma coisa do Queen...
— Quem?
— O Queen.
— Não é a Queen?
— Não. O Queen. E o nome de um conjunto, papai.
— Ah, certo. O Queen. No sintetizador.
— Acho que vai ser o maior barato!
— Só o sintetizador ou...
— Não. Claro que precisa ter uma guitarra elétrica, um baixo elétrico...
— Claro. Quer dizer, tudo bem tradicional.
— Isso.
*
— Eu sei que não é da minha conta. Afinal, eu sou só o pai da noiva.
Um nada. Na recepção vão me confundir com um garçom.
Se ainda me derem gorjeta, tudo bem. Mas alguém pode me dizer por que chamam o nosso futuro genro de Varum?
— Eu sabia...
— O quê?
— Que você já ia começar a implicar com ele.
— Eu não estou implicando. Eu gosto dele. Eu até o beijaria na testa se ele algum dia tirasse aquele capacete de motoqueiro.
— Eles nem casaram e você já está implicando.
— Mas que implicância? É um ótimo rapaz. Tem uma boa cabeça.
Pelo menos eu imagino que seja cabeça o que ele tem debaixo do capacete.
— É um belo rapaz.
— E eu não sei? Há quase um ano que ele frequenta a nossa casa diariamente.
É como se fosse um filho. Eu às vezes fico esperando que ele me peça uma mesada. Um belo rapaz. Mas por que Varum?
— É o apelido e pronto.
— Ah, então é isso. Você explicou tudo. Obrigado.
— Quanto mais se aproxima o dia do casamento, mais intratável você fica.
— Desculpe. Eu sou apenas o pai. Um inseto. Me esmigalha. Eu mereço.

*
— Aí xará!
— Oi, Varum, como vai? A sua noiva está se arrumando. Ela já desce.
 Senta aí um pouquinho. Tira o capacete...
— Essa noivinha...
— Vocês vão ao cinema?
— Ela não lhe disse? Nós vamos acampar.
— Acampar? Só vocês dois?
— É. Qual é o galho?
— Não. É que... Sei lá.
— Já sei o que você tá pensando, cara. Saquei.
— É! Você sabe como é...
— Saquei. Você está pensando que só nós dois, no meio do mato, pode pintar um lance.
— No mínimo isso. Um lance. Até dois.
— Mas qualé, xará. Não tem disso não. Está em falta. Oi, gatona!
— Oi, Varum. O que é que você e papai estão conversando?
— Não, o velho aí tá preocupado que nós dois, acampados pode  pintar um lance. Eu já disse que não tem disso.
— Ô, papai. Não tem perigo nenhum. Nem cobra. E qualquer coisa o Varum me defende. Eu Jane, ele Tarzan.
— Só não dou o meu grito para proteger os cristais.
— Vamos?
— Vamlá?
— Mas... Vocês vão acampar de motocicleta?
— De motoca, cara. Vá-rum, vá-rum.
*
— Descobri por que ele se chama Varum.
— O quê? Você quer alguma coisa?
— Disse que descobri por que ele se chama Varum.
— Você me acordou só para dizer isto?
— Você estava dormindo?
— É o que eu costumo fazer às três da manhã, todos os dias. Você não dormiu?
— Ainda não. Sabe como é que ele chama ela? Gatona.
Por um estranho processo de degeneração genética, eu sou pai de uma gatona.
Varum e Gatona, a dupla dinâmica, está neste momento, no meio do mato.
— Então é isso que está preocupando você?
— E não é para preocupar? Você também não devia estar dormindo.
A gatona é sua também.
— Mas não tem perigo nenhum!
— Como, não tem perigo? Um homem e uma mulher, dentro de uma tenda, no meio do mato?
— O que é que pode acontecer?
— Se você já esqueceu, é melhor ir dormir mesmo.
— Não tem perigo nenhum. O máximo que pode acontecer é entrar um sapo na tenda.
— Ou você está falando em linguagem figurada ou eu é que estou ficando louco.
— Vai dormir.
— Gatona. Minha própria filha...
— Você também tinha um apelido pra mim, durante o nosso noivado.
— Eu prefiro não ouvir.
— Você me chamava de Formosura. Pensando bem, você também tinha um apelido.
— Por favor. Reminiscências não. Comi faz pouco.
— Kid Gordini. Você não se lembra? Você e o seu Gordini envenenado.
— Tão envenenado que morreu, nas minhas mãos. Um dia levei num mecânico e disse que a bateria estava ruim.
Ele disse que a bateria estava boa, o resto do carro é que tinha que ser trocado.
— Viu só? E você se queixa do Varum. Kid Gordini!
— Mas eu nunca levei você para o mato no meu Gordini.
— Não levou porque meu pai matava você.
— Hmmmm.
— “Hmmmm” o quê?
— Você me deu uma ideia. Assassinato...
— Não seja bobo.
— Um golpe bem aplicado... Na cabeça não porque ela está sempre bem protegida. Sim. Kid Gordini ataca outra vez...
— O que você tem é ciúme.
Nisso tudo, tem uma coisa que me preocupa acima de tudo que é o que me tira o sono.
— O quê?
— Será que ele tira o capacete para dormir?
*
— Bom dia.
— Bom dia.
— Eu sou o pai da noiva. Da Maria Helena.
— Maria Helena... Ah, a Gatona!
— Essa.
— Que prazer. Alguma dúvida sobre a cerimônia?
— Não, Padre Osni. E que...
— Pode me chamar de Tuco. E como me chamam.
— Não, Padre Tuco. E que a Ga... A Maria Helena me disse que ela pretende entrar dançando na igreja. O conjunto toca um rock e a noiva entra dançando, é isso?
— É. Um rock suave. Não é rock pauleira.
— Ah, não é rock pauleira. Sei. Bom, isto muda tudo.
— Muitos jovens estão fazendo isto. A noiva entra dançando e na saída os dois saem dançando. O senhor sabe, a Igreja hoje está diferente.
 É isto que está atraindo os jovens de volta à Igreja. Temos que evoluir com os tempos.
— Claro. Mas, Padre Osni...
— Tuco.
— Padre Tuco, tem uma coisa. O pai da noiva também tem que dançar?
— Bom, isto depende do senhor. O senhor dança?
— Agora não, obrigado. Quer dizer, dançava. Até ganhei concurso de chá-chá-chá. Acho que você ainda não era nascido. Mas estou meio fora de forma e...
— Ensaie, ensaie.
— Certo.
— Peça para a Gatona ensaiar com o senhor.
— Claro.
— Não é rock pauleira.
— Certo. Um roquezinho suave. Quem sabe um chá-chá-chá? Não. Esquece, esquece.
*
— Você está nervoso, papai?
— Um pouco. E se a gente adiasse o casamento? Eu preciso de uma semana a mais de ensaio. Só uma semana.
— Eu estou bonita?
— Linda. Quando estiver pronta vai ficar uma beleza.
— Mas eu estou pronta.
— Você vai se casar assim?
— Você não gosta?
— É... diferente, né? Essa coroa de flores, os pés descalços...
— Não é um barato?
*
— Um brinde, xará!
— Um brinde, Varum.
— Você estava um estouro entrando naquela igreja.  Parecia um bailarino profissional.
— Pois é. Improvisei uns passos. Acho que me sai bem.
— Muito bem!
— Não sei se você sabe que eu fui o rei do chá-chá-chá.
— Do quê?
— Chá-chá-chá. Uma dança que havia. Você ainda não era nascido.
— Bota tempo nisso.
— Eu tinha um Gordini envenenado. Tão envenenado que morreu. Um dia levei no...
— Tinha um quê?
— Gordini. Você sabe. Um carro. Varum, varum.
— Ah.
— Esquece.
— Um brinde ao sogro bailarino.
— Um brinde. Eu sei que vocês vão ser muito felizes.
— O que é que você achou da minha beca, cara?
— Sensacional. Nunca tinha visto um noivo de macacão vermelho, antes. Gostei. Confesso que quando entrei na igreja e vi você lá no altar, de capacete...
— Vacilou.
— Vacilei. Mas aí vi que o Padre Tuco estava de boné e pensei, tudo bem. Temos que evoluir com os tempos. E ataquei meu rock suave.

Texto extraído do livro "O analista de Bagé", L&PM Editores – Porto Alegre, 1981, pág. 13

Nenhum comentário:

Postar um comentário